domingo, 30 de janeiro de 2011

ERA UMA VEZ NA ÍNDIA...


Cabelo ao vento, língua afiada, perna esguia, sorriso só para quem merece…


Chamas-te Maria. Como a santa.

És virgem. Mas não como a santa.

Quando te vi, segui-te. Os outros, de quem não me lembro o rosto, quando te viram, seguiram-te. Eram muitos. Uns trinta. Ou quinhentos. Fizemos-te uma procissão. Como à santa.

Maria, de olhos grandes, muito grandes, que servem para me ver melhor. São castanhos. É-me igual, até podiam ser magenta. São para me ver melhor. Chega-me. E sobra-me.


Perdi os meus pais quando era pequenino. Não, eu não os perdi.

Eles morreram quando eu era pequenino. Os dois.

Era pequenino, mas não o suficiente. Se fosse um bocadinho pequenino mais pequenino, não me lembraria deles. Mas lembro.

E o vento assobia a treze mil quilómetros à hora a toda a hora no meu coração. E Jesus ralha no meu coração, com trovões maus e raios que raios os partam…No coração ou em outro lado qualquer. Sei que o vozeirão de Jesus e os agudos do vento me abanam, sei que me deixam a tremer, sei que me magoam. Fazem dói-dói, como eles diziam…

Passaram-se duas dezenas de anos, centenas de meses e milhares de dias e não perdem o pio.

Há dias em que sou sem-abrigo de mim mesmo. Estendo a mão e peço-me esmola. Para ver se passa.

Não passa.

Às vezes, sempre ao domingo, perguntas-me se tenho saudades deles.


-...
- Chora, meu amor. Chora tudo.

Descubro músculos no rosto de cada vez que choro. Estão duros, com as veias de fora. Levantam o haltere mais pesado. Sem fazer cara feia…

Fiz este hiato na tua caracterização porque eles merecem. O amor e o sofrimento entrelaçam as mãos com força. São gémeos. Falsos, mas gémeos.

Quanto mais amas, mais acabarás por sofrer. Dês tu as voltas que deres.

E sabes, isso é justo. O sofrimento mata-te aos bocadinhos, mas endireita-te a coluna. Dignifica-te. O sofrimento é uma forma estrambólica de amar. Porém, uma forma.

Mas…Maria dos olhos grandes, eu sou muito mais do que só isto. E mesmo quando sou isto, sou-o contigo. A fazeres-me festinhas. A estares em silêncio. A abraçares-me. A dizeres para eu chorar que me faz bem.



Maria, que tens a mania que és fina, posto isto, sou um homem feliz. Posto isto, sou um filho da mãe sortudo. Por um triz, mas um triz bem anãozinho, não acredito em Deus.

Deus estava a sair e eu a entrar. Não nos cruzámos.
Homessa!!

Maria, que tens dias que também não és flor que se cheire, nem na Papua Nova Guiné há uma história de amor mais bonita que a nossa.

Talvez na Índia, por trás do Taj Mahal, numa perpendicular à rua principal de Agra, nas margens do Yamuna, haja uma.

Não. Nem aí.

Aí só começou.

Agosto dava as últimas e o meu molar também.

Um autodidacta, com jeito para o alicate, ou não, o Kailash, dentista de rua, salvou a minha vida. Não a do meu dente. A minha vida.

Foi sentada numa cadeira que, a julgar pelo aspecto, rivalizava em idade com as Pirâmides de Gizé, que te vi pela primeira vez. Estavas de boca aberta.

O molar abanava e eu estava na fila, atrás de um octogenário que não parava de te olhar para o peito. Para os dois, aliás.

Abanei a cabeça em sinal de desaprovação. Entretanto, olhei também…E por lá fiquei!

Hindi, mais hindi, hindi a torto e a direito, afinal estava na Índia.

- Fooooda-se.

O dialecto não me era, de todo, estranho. À minha frente, tu. Cabelo anarco-sindicalista. De esquerda liberal, cada fio era um Karl Marx a berrar contra o capitalismo. O cabelo desalinhado, sem ponta por onde pegar, mais bonito do mundo. Era preto.

Uma ou outra sarda, pele morena, olhos castanhos. Grandes.

O Kailash acabara de te subtrair um dente. Um que estava bom!


- És portuguesa?


- Não, sou Cipriota, com raízes no Turquemenistão. (irónica e com as duas mãos na bochecha direita)


- Desculpa. Era uma pergunta retórica.

(não respondes. Sinto que ficas "a isto" de me mandar copular. Vais à tua vida)

Segui-te. Tinhas pelo na venta, falavas a minha língua e não me passavas cartão.

Era pecado não te seguir. Eras a minha saída, o meu bilhete. Se perdesse o teu comboio, roubava-me a pouca vida que tinha. Eu sabia-o.

- Sou o Tiago. Do Porto.


- Maria. Do mundo. (em passo apressado)


- Maria do mundo, posso acompanhar-te? Tenho gomas. Das gordinhas.

(Sorris para mim. Não faleço porque não calha)

Caminhámos pela poeira, gozaste com o meu sotaque, gozei com o teu “Deus te salve” e tu com o meu "biba!" depois de espirrarmos em uníssono. Disseste-me, a rir, que o meu molar estava por minutos, disse-te “olha quem fala”.

Falei-te do Gandhi, disseste-me para não me esforçar para parecer erudito. Meti a viola no saco.

Esticaste o pescoço e riste-te da minha cara de parvo. De parvo não. De lorpa.

Baixei o pescoço.

Tinhas sandálias iguais às da minha mãe.


Nesse dia, o único em que estivemos juntos na Índia, amei-te devagarinho. Amei-te a olhar-te nos olhos. Uma, duas, muitas vezes.
Nesse dia, o único em que estivemos juntos na Índia, amaste-me devagarinho. Amaste-me a olhar-me nos olhos. Uma, duas, muitas vezes.

Bem-hajas, Vasco da Gama, seu descobridor do caminho marítimo para a minha ilha do amor! Não há pai para ti!
Bem hajam os que, antes de ti, dobraram o cabo das tormentas e partiram o focinho ao Adamastor. Dava-vos um beijinho no rabinho a cada um, se pudesse. Juro. Pelo S. Bento das pêras.

Maria, que precisas de pimenta na língua, pedi-te, com olhinhos de carneirinho mal morto, para me deixares gostar de ti.
Triunfante, dificultaste-me a vida.

- Daqui a dois meses, às quatro e trinta e três da tarde, se ainda quiseres gostar de mim, aparece-me em Picadilly Circus, juntinho à estátua de Eros.

Começaste a chorar e pediste para eu sair.

Um milhão de fantasmas faziam excursões nos teus olhos grandes.

No índice da nossa vida, o primeiro capítulo terminou em Londres. Às quatro e trinta e três, com o Eros a espetar uma flecha no meio de nós.

Resgatei-te.

Resgaste-me.

Maria, que és do mundo, que és minha, os meus pais iam gostar de te conhecer. Não à primeira, se calhar. Mas iam.


Amo-te.