quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

CRIS. Assim, em maiúsculas.


Gosto de ti. Reticências.


Vives em mim. Em todos os meus andares. Da cave ao sótão do meu eu, lá estás tu e a tua fila indiana de dentes brancos. Todos certinhos.Todos direitinhos.

Estou longe de ti, só hoje, mas sinto necessidade de te escrever. Assim, com esta letra à primária, bem redondinha. É mais gorda que o caracter do teclado, tem a anca mais larga, mas tem melhor coração.

Escolheste-me. Da multidão de rapazes de nariz pequenino e de olhos verde-azeitona, tu, sua morcona, lançaste o teu dedo indicador na minha direcção. Olhei para o lado direito. Depois para o esquerdo. Olhei para cima. Olhei para ti, com o meu indicador a apontar para mim e, a medo, como num filme mudo, disse: EU?

Salvaste-me…A única coisa que eu tinha de original era ter lateralidade cruzada. Escrevia com a direita e chutava com o esquerdo. Achaste piada. Não discuto gostos. Obrigado, lateralidade cruzada.

Lembro-me de ti na Escola. Lembro-me do centésimo de segundo em que a minha vida ficou circunscrita a ti. Rasgaste em trinta e sete pedacinhos o exame de Filosofia, dois minutos depois de começar. Levantaste-te, juntaste os pedacinhos, agrafaste-os e deste-os, a sorrir, ao professor. Sempre a sorrir, e de forma muito educada, mandaste o senhor à merda. Antes de saíres, e ainda a sorrir, disseste-lhe para ir perguntar o que é o amor numa perspectiva epistemológica, à mãezinha dele. Um a um, levantámo-nos e batemos-te palmas...

O amor não se pergunta. Ele exprime-se por ele. Não precisa de cordas vocais nem de semântica para ser objectivo. O amor está nos olhos, nunca nas palavras. Elas só atrapalham, disseste-me…

Disse-te que não.

Disseste-me que sim.

-E não…

- E sim…

-Desculpa, Cris, tu não percebes patavina de amor. Aliás, percebes tanto de amor como eu percebo de agropecuária Checoslovaca.

(Riste-te.)

- Cris, se o amor está só nos olhos, porque é que eu tremo sempre que estou ao pé de ti. Que eu saiba, não tremo com a íris nem com a córnea. Dá-lhe liberdade, deixa-o vir por aí a baixo. Não o engaioles nos olhos...

(Coraste.)

- João, não gosto que digas “ao pé”. Diz antes “à beira”.

- Cris, sabes uma coisa?

( a olhar para o chão)

- Sei muitas.

- O olhar de que falas pode ser um não olhar?

(Ris, envergonhada.Continuas a olhar para o chão)

- João, vamos comer pão com geleia?


Esse diálogo, que por um triz não foi monólogo, marcou a tua vida. Não a minha, porque eu já sabia de que farinha eras feita.

Sabes, amor, aos setenta a vida não é como aos vinte. Sim, é pior. Sem eufemismos. Ninguém gosta de envelhecer...

A vida é um estupor. A vida é um coito interrupto. Faz cara feia a orgasmos de gritos de boca aberta e ao suor que cai em cataratas do Niágara…A vida mete os dedos na boca quando te vê dormir, agarrada a mim…

A vida é virgem. Ninguém lhe pega. Há-de morrer assim, com o hímen intacto. Bem feito.

Ela deu-me-te. Ela vai-me tirar-te…

Meu amor, eles sabem lá…Se soubessem nunca diriam que primeiro vem a paixão, que dizem ser efémera, os desgraçados, e depois vem o amor. Uma coisa tranquila, para aquecer os pés...O Amor, para eles, pode ser substituido por botijas e carapins, vê lá tu…

Hoje velhinhos, digo-te, muito baixinho: Excitas-me tanto como no primeiro dia. Ainda mais baixinho, a sussurrar ao ouvido: A tua pernoca septuagenária continua a adiar aquilo que ambos sabemos que era suposto já ter vindo.

Agora em mímica, porque o que vou dizer é quase quase ordinário: Paixão, meu grande amor, é termos setenta anos e “darmos duas”. Pronto, já disse. Desculpa, desculpa, desculpa.

Não volta a acontecer…Refiro-me, obviamente, à linguagem!


Cristãos, islâmicos, brancos, pretos, feios, bonitos, ciganos, beatas, prostitutas, freiras, ladrões, um apelo.

Acreditem em Cristo, em Isaías, em Abraão, em Maomé …Mas acreditem mais no amor.

Eu quero lá saber que apregoem Deus , Santo Eugénio,  ou que escrevam teorias sobre o caroço de Adão. Apregoem mas é o Amor. Rezem, orem, chorem, peregrinem, mas Deus é uma coisa. Sim, Deus é uma coisa, lamento. Deus é uma coisa que se chama Deus como se podia chamar Alberto. Ou, se tivesse mau gosto, Rolando Orlando.

Deus sou e tu, Cris, quando comemos pipocas e bebemos vinho, por exemplo. Ou quando estou doente e me dás beijinhos e papas de leite. Deus é isto. Uma coisa invisível, sem cara, sem número de contribuinte. Deus é um arrepio que me faz querer abraçar-te com tanta tanta força e fechar os olhos com tanta tanta força…

Acabou o enigma…

Cris, perdão.

Estou amargo. Não tenho força. Não é justo. A vida é fascista.

Tenho medo de morrer. Tenho medo que tu morras. Como é que vai ser quando morrer e tu não estiveres lá. Ou o contrário...Chamas por mim, velhinha?

De xis-acto em punho, rasguei o meu peito com o teu nome. Ejaculei sangue atrás de sangue. Sangue preto, não vermelho. Não o estanquei. Jamais o estancaria, Cris…

Do meu peito já ninguém te tira.

 Nem a vida.

Nem a morte.

Um “amo-te” sem palavras. Só olhos nos olhos.

Até amanhã.